Franz Kafka, A Metamorfose, Lisboa, Edições Europa-América, s/d, 2ª edição (tradução de J. Teixeira de Aguillar) [contém ainda os pequenos contos "O nosso advogado" e "Um médico de aldeia"]
"Uma manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco insecto". É este o célebre começo. Do livro disse um sábio, George Steiner, no seu "Gramáticas da Criação", ser ele a "fábula-chave da modernidade" (16), pois indicia o retrocesso, anuncia a inversão da esperada ascensão, aponta o caminho da bestialização, passível (que não obrigatório) de ser percorrido pelo humano. Ou seja, n' A Metamorfose descobre a falácia e a falência do "progresso". Se esta foi a ideia mestra de XIX será com Kafka que emerge a torturada consciência de que não significa ele (o "progresso") a ascensão moral e racional que se pensava. A mutação não é o aperfeiçoamento da humanidade.
O nosso percurso é então o da possível, quotidiana bestialização. Mas não é de uma escatologia que se trata. O que angustia é a apresentação da naturalidade do retrocesso. Se o absurdo (a "insectização" do protagonista) é inesperado e doloroso o que supreende é a sua integração na normalidade (desde a sofrida solidariedade da irmã até ao corolário da acção higiénica da mulher-a-dias, esse avatar do senso comum, um pequeno e mudo monumento literário).
Gregor Samsa é um funcionário, um "burocrata" - na realidade é um caixeiro-viajante. Está preso ao trabalho, e à sua rotina ainda que esta lhe seja algo desagradável (mas não excessivamente, pois não é de uma revolta que se trata, apenas de um certo fastio) pelas suas obrigações familiares e morais, pois dele depende o ressarcir de dívidas assumidas pelos seus pais. Por isso integra perfeitamente, impregna-se, das suas obrigações de empregado - que derivam não só das necessidades económicas mas de uma adesão moral. Dado que inopinadamente se torna um insecto não pode ir trabalhar, mas porque não se consegue levantar, a sua intenção é a continuidade.
O nosso percurso é então o da possível, quotidiana bestialização. Mas não é de uma escatologia que se trata. O que angustia é a apresentação da naturalidade do retrocesso. Se o absurdo (a "insectização" do protagonista) é inesperado e doloroso o que supreende é a sua integração na normalidade (desde a sofrida solidariedade da irmã até ao corolário da acção higiénica da mulher-a-dias, esse avatar do senso comum, um pequeno e mudo monumento literário).
Gregor Samsa é um funcionário, um "burocrata" - na realidade é um caixeiro-viajante. Está preso ao trabalho, e à sua rotina ainda que esta lhe seja algo desagradável (mas não excessivamente, pois não é de uma revolta que se trata, apenas de um certo fastio) pelas suas obrigações familiares e morais, pois dele depende o ressarcir de dívidas assumidas pelos seus pais. Por isso integra perfeitamente, impregna-se, das suas obrigações de empregado - que derivam não só das necessidades económicas mas de uma adesão moral. Dado que inopinadamente se torna um insecto não pode ir trabalhar, mas porque não se consegue levantar, a sua intenção é a continuidade.
É esse outro, o insecto, o monstro, um de nós? Samsa, de súbito o Outro, continua consciente assumindo-se exactamente o contrário, crendo ser ainda o Humano. A forma como é tratado pela família assim o indicia, a monstruosidade porque familiar será escondida, mas não evacuada. Apenas o medo, devido à incompreensão dos seus movimentos (à incomunicabilidade radical) implicará a agressão letal, pois quasi-paralizadora, a laranja que se lhe incrustará sob a carapaça. O tempo decorrerá, e ao mesmo tempo que o hábito vai integrando essa realidade o fastio para com ela assumir-se-á. É o fastio e a incomodidade (o prejuízo causado com a fuga dos hóspedes), e não o medo, que implicarão a ruptura entre a sua família e o agora insecto. A diferença constrange, não quando irrompe, mas sim quando convive. Não é o excepcional que perturba, é o quotidiano ameaçado.
Estrelas: 5