Courela

"Pai, porque é que tens tantos livros?" "Fui comprando" "Já os leste todos?" "Haa... vou lendo..." (24.11.2008)

domingo, 28 de dezembro de 2008




Franz Kafka, A Metamorfose, Lisboa, Edições Europa-América, s/d, 2ª edição (tradução de J. Teixeira de Aguillar) [contém ainda os pequenos contos "O nosso advogado" e "Um médico de aldeia"]


"Uma manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco insecto". É este o célebre começo. Do livro disse um sábio, George Steiner, no seu "Gramáticas da Criação", ser ele a "fábula-chave da modernidade" (16), pois indicia o retrocesso, anuncia a inversão da esperada ascensão, aponta o caminho da bestialização, passível (que não obrigatório) de ser percorrido pelo humano. Ou seja, n' A Metamorfose descobre a falácia e a falência do "progresso". Se esta foi a ideia mestra de XIX será com Kafka que emerge a torturada consciência de que não significa ele (o "progresso") a ascensão moral e racional que se pensava. A mutação não é o aperfeiçoamento da humanidade.

O nosso percurso é então o da possível, quotidiana bestialização. Mas não é de uma escatologia que se trata. O que angustia é a apresentação da naturalidade do retrocesso. Se o absurdo (a "insectização" do protagonista) é inesperado e doloroso o que supreende é a sua integração na normalidade (desde a sofrida solidariedade da irmã até ao corolário da acção higiénica da mulher-a-dias, esse avatar do senso comum, um pequeno e mudo monumento literário).

Gregor Samsa é um funcionário, um "burocrata" - na realidade é um caixeiro-viajante. Está preso ao trabalho, e à sua rotina ainda que esta lhe seja algo desagradável (mas não excessivamente, pois não é de uma revolta que se trata, apenas de um certo fastio) pelas suas obrigações familiares e morais, pois dele depende o ressarcir de dívidas assumidas pelos seus pais. Por isso integra perfeitamente, impregna-se, das suas obrigações de empregado - que derivam não só das necessidades económicas mas de uma adesão moral. Dado que inopinadamente se torna um insecto não pode ir trabalhar, mas porque não se consegue levantar, a sua intenção é a continuidade.


É esse outro, o insecto, o monstro, um de nós? Samsa, de súbito o Outro, continua consciente assumindo-se exactamente o contrário, crendo ser ainda o Humano. A forma como é tratado pela família assim o indicia, a monstruosidade porque familiar será escondida, mas não evacuada. Apenas o medo, devido à incompreensão dos seus movimentos (à incomunicabilidade radical) implicará a agressão letal, pois quasi-paralizadora, a laranja que se lhe incrustará sob a carapaça. O tempo decorrerá, e ao mesmo tempo que o hábito vai integrando essa realidade o fastio para com ela assumir-se-á. É o fastio e a incomodidade (o prejuízo causado com a fuga dos hóspedes), e não o medo, que implicarão a ruptura entre a sua família e o agora insecto. A diferença constrange, não quando irrompe, mas sim quando convive. Não é o excepcional que perturba, é o quotidiano ameaçado.


Estrelas: 5

quarta-feira, 20 de agosto de 2008



Pedro Juan Gutiérrez, O Nosso GG em Havana (D. Quixote, 2007, tradução de Magda Bigotte de Figueiredo)


De quando em vez brota mais um escritor de moda. E nestas décadas vai acontecendo com os latino-americanos, muito a jeito por questões mais ou menos políticas. Há alguns anos foi-me enchida (e por minha culpa também) a casa de pequenos e manuseáveis livros - tinham essa vantagem - de Luis Sepúlveda. Uma maçada trivial, diga-se. Mas não só latino-americanos, também toca aos anglófonos (normalmente a área ideológica dos elogiadores é outra: tem muito a ver com os ícones Upstairs Downstairs e Che Guevara, uns sonham-se myladys outros comandantes, e transpõem isso para o que dizem dos livrecos). Nisso de anglófonos lembro-me do espanto ao ler o muito incensado e premiado "Amsterdam" de Ian McEwan. Tinha uma trama qualquer, que esqueci, mas que foi completamente previsível. E tinha em fundo e superfície um nada. E tanta tralha, e in e out-blog, que lera no elogio …

Desabafo que vem a propósito deste O Nosso GG em Havana, que me chegou muito recomendado. Cubano exo-Castro, desbragado, mito boémio etc e tal, o autor rende. Dele já lera “Carne de Cão”, sexo desbragado (os protagonistas - ronda de alter egos - gostam de fornicar na água do mar) e muito rum, alguma piada adolescente. Daí que me deixei ir na onda, 10.80 euros a menos no orçamento familiar também não é tanto assim.

Começa grotesco, um tal de George Greene arriba a Havana, é confundido com Graham Greene, e envolve-se com um travesti histriónico com uma pila de 40 cms. Escusado será dizer que negro, Gutiérrez tem uma fixação em pilas negras que chega a ser pungente. Depois arranja (arranjará?) um enredo policial, traz o verdadeiro Graham Greene à cidade, em descanso do gestação do “Quiet American”. Aí Gutiérrez acalma o grotesco - mas não o tom etnográfico sobre os pirilaus afro-cubanos - e dedica-se a uma ficção ensaística, misturando de forma paupérrima uma inenarrável trama pró-espionagem com uma explanação sobre o cerne de Greene/Fowler (o protagonista do Americano Tranquilo), enceta o “Factor Humano”, e remata as constantes deambulações entre o bem e o mal que o velho, e verídico, Greene dirimiu ao longo da vida.

Enfim, o livro é uma mera merda. Nem vale o desabafo. Este só encontra causa ao ver os elogios, seja na escrita de jornal, seja até em quem mo recomenda. Vamos ler coisas de jeito? Resistir ao marketing? Ao comercial e ao político. Livros não faltam. E na política, francamente, antes o Fidel Castro …

terça-feira, 19 de agosto de 2008



Pedro Juan Gutiérrez, Carne de Cão, Lisboa, D. Quixote, 2005 (tradução Jorge Fallorca)


Rum e Sexo. Muito de ambos. O protagonista (alter ego?) instalou uma pérola na glande, para potenciar a potência. É esta pérola o único adorno visível (?) numa escrita despojada - lembrando os ancestrais neste tipo. Nunca tinha lido este Gutiérrez, histórias (como se contos, como se episódios) com garra ainda que a darem a sensação que chegadas depois de muitos outros livros já havidos. Entenda-se, a rapar o tacho. Mas saborosas. Se calhar por isso, por ser uma descoberta de autor.

Um fatalismo um bocado blasé: "Não sabem que a sorte é de quem a encontra e não de quem a procura." (95), a sublinhar esta ideia de que não é tão original, uma sensação de pose literária

Ensaio sociopolítico sobre a Cuba local: "Recordo aquela época aborrecida, há quinze anos. Do meu apartamento, no quarto andar, só se via uma serração e outros edifícios, todos idênticos. Nunca se passava nada, éramos todos bons e correctos, obedientes e disciplinados. Agora é o contrário: somos todos maus e incorrectos. As mulheres, ao ataque, as pessoas cínicas e perversas. Todos desesperados numa correria louca e desenfreada atrás do dólar nosso de cada dia. É preciso avançar seja como for e deixar a merda para trás. Está bem. Gosto. Pelo menos não é aborrecido. E as pessoas tiraram a máscara. Nada de aparências. Agora é a época do caos e da vertigem. Garras e presas, à beira do precipício." (147-148) A fazer lembrar outros contextos pós-comunistas, com reconstruções dos "tempos" antigos, sobrevalorizando características do então (até surpreendentes). Mas, honestamente, coisa longe da literatura.
Feito com todo o vagar este é um sítio de arrumação de ideias (e informações) sobre alguns livros. Para que um dia, bem mais tarde, a filha da epígrafe as leia e os leia, se lhe apetecer.

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